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INFLAÇÃO MÉDICA

LEONARDO GOMES DE CARVALHO

Publicado em 02/05/2023

Circulam pela internet textos que abordam questões econômicas contemporâneas relacionadas à saúde no Brasil. Desenham-se cenários catastróficos, em que grupos abastados protagonizam tragédias financeiras envolvendo os planos de saúde suplementar. Pauta-se a oligopolização crescente do setor usando cifras bilionárias flutuando ao sabor dos movimentos de mercado, numa crise administrativa que ganhou dimensões dramáticas com a pandemia.

De fato, é incontestável a flutuação deste cenário, suas incertezas e seus impactos nos atores que o integram, incluindo a classe médica, atingida por impiedosa desvalorização. Contudo, deixemos aos especialistas a análise numérica da saúde brasileira voltando o foco para o cotidiano médico, através das lentes de um neurocirurgião do Vale do Jequitinhonha. A reflexão tem como eixo a neurocirurgia com suas largas cifras e a saúde pública, podendo ser ampliada para qualquer atividade médica, arriscando vencer as fronteiras nacionais.

Um destes tensos textos revelou uma expressão a mim até então desconhecida: a inflação médica. Segundo o autor, tendo como fonte o IPCA/IBGE, “a inflação médica é três vezes superior à inflação geral”.

No mercado que envolve a medicina, estão crescentemente inflacionadas a judicialização, a desigualdade na distribuição geográfica de profissionais no país, a insatisfação com a desvalorização, o medo e a instabilidade emocional dos profissionais. Incontáveis gráficos materializam a angústia da classe médica, estratificando o sofrimento por especialidade, ganho financeiro e rotinas de trabalho, analisando condições psíquicas como ansiedade, burnout, depressão e suicídio. Os resultados refletem a ambiguidade de uma nobre classe que, tendo nas mãos a prerrogativa de cuidar e curar, apresenta-se física e psiquicamente fragilizada, vulnerável, demandando ela mesma escuta e cuidado.

Quantos bilhões são gastos em saúde por causa do medo, seja por parte do médico ou do paciente?

Ao mesmo tempo, neste mesmo mercado médico, aparecem historicamente inflacionados o ego e a vaidade. Quando o sucesso financeiro individual é a meta principal (senão a única) de uma competitividade gananciosa, fugir do colapso psíquico pode significar aceitar rendimentos não declaráveis. Curioso imaginar como tais gratificações entram no fluxo de caixa envolvendo a dita inflação médica. Perigoso é quando tais rendimentos são tributados na conta psíquica dos profissionais envolvidos, mais ainda se como lucro psíquico.

A saúde depende da ciência, a qual vem aprimorando muitas das condutas médicas e aumentando tanto a expectativa quando a qualidade de vida da população. Contudo, não se pode negligenciar o fato de que a ciência é nutrida em grande parte pela indústria farmacêutica, como financiadora e fornecedora.

Lamentavelmente, cada vez mais inflacionada segue a indústria da doença e sua seleção artificial de gente. Este sistema, que por um lado previne adoecimentos e trata o ser humano com proposições brilhantes, por outro inventa despautérios diagnosticistas, explicações confinadas aos exames complementares e fluxogramas que restringem as soluções terapêuticas às farmácias e sofisticadíssimos materiais médicos. Uma indústria que atesta os louros deste reducionismo em trabalhos científicos milionários, desdenhando de qualquer produto que, em última análise, não represente lucro máximo, prestígio e, se acertarem em cheio, moda.

Estas terapias arrebatadoras são cada vez mais caras e disponíveis para uma minoria. O extremo dessa minoria constitui uma elite econômica que não depende nem de planos de saúde nem do SUS, constrangendo direta ou indiretamente nós que deles somos usuários. Ignora-se que, sem o SUS, a saúde de todo e qualquer brasileiro seria direta e negativamente afetada.

Armam-se os estandes para expor essa desigualdade nos congressos médicos, patrocinados via de regra pela própria indústria. Nestes encontros denominados científicos, a assustadora maioria do que é apresentado, com orgulho narcísico e despudorados conflitos de interesse, está fora do alcance dos usuários da saúde pública brasileira. A ciência não se envergonha de escolher a quem tratar.

Apesar de cliente, não tenho pena dos planos de saúde. São entidades de fantasia, ordens imaginadas que não sofrem. Claro, há vidas humanas por trás deles. As que estão na gestão, segundo os especialistas, compõem famílias capazes de injetar bilhões num negócio. Ou seja, para elas, o risco de falência só ameaça suas pessoas jurídicas, outras ordens imaginadas imunes ao sofrimento. Seus gestores, aquelas pessoas físicas da elite econômica que pode usufruir no particular o que há de melhor no mercado mundial da saúde, não sentem no corpo os abalos deste mercado. Do lado oposto, estão as muitas vidas que dependem sofregamente da saúde suplementar. Caso essa inflação médica mantenha as tendências atuais, muitos usuários tenderão a evadir. Restará, deflacionado e sobrecarregado, o Sistema Único de Saúde. Será?

Tenho pena do SUS. Mesmo sendo também ele uma ordem imaginada.
Seus subfinanciamentos, seus atrasos, a gestão do impossível.
Seu cuidar, recheado de qualidades, mundialmente reconhecidas, mas acessíveis até o limite determinado por frias tabelas. Não um limite científico, mas um cruel e seletivo limite econômico.

Tenho pena das vidas doentes que precisam implorar como podem quando carecem de tratamentos complexos que excedem esse limite, integrando a desumana variável “fora da tabela”. Tratamentos estes que demandam materiais médicos de alto custo produzidos pela indústria, a mesma que financia os congressos que exaltam as novidades mais caras.

No campo científico, a necessária e despudorada ciência gaba-se por implantar o que há de mais caro até mesmo em esvaídos corpos de usuários centenários privilegiados, desde que se possa pagar e sejam preenchidos os critérios que ela mesma estabeleceu, contribuindo para o colapso financeiro e moral do sistema. Critérios estes que sancionam a coragem de se apresentar nos congressos os desfechos fatais daqueles indivíduos seculares que foram portadores de próteses de dezenas de milhares de dólares por poucos minutos de suas longas vidas.

Enquanto isso, na arena da realidade pública, não é incomum ser necessário humilhar-se para tentar acesso a tratamentos minimamente mais complexos, mesmo aquele mínimo potencialmente curativo e tão explicitamente depreciado nos congressos.

No SUS, é muito possível morrer em angustiantes filas de espera. Corpos padecem sem direito a benefícios cientificamente comprovados. Vidas descartadas no mesmo saco que as crescentes sucatas científicas, compostas por próteses, medicamentos e outros materiais pouco mais antigos rejeitados pela ciência em nome de outros, talvez melhores, sempre mais caros. Resta o caminho da judicialização, com toda a sua morosidade burocrática.

Não fossem a Ciência e o Direito ordens imaginadas, como debateriam a vida humana frente aos seus próprios conflitos de interesse?
Qual a contribuição médica para a norma jurídica da inflação científica?

Desinflacionar a medicina depende também da medicina.

Deflacionada segue a vida.

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10 respostas

  1. Parabéns pelas palavras. Belas colocações. Essa triste realidade avassala corações dos menos favorecidos e não toca os dos privilegiados. Muitas vezes os usuários nem sabem o risco que estão correndo e se acalmam diante da ignorância ou simplicidade deixando suas vidas sob risco de desamparo nos momentos mais difíceis. Por outro lado os clientes das operadoras de saúde na mão dessas empresas que só visam lucro acima de ética e saúde de qualidade. Oh céus

  2. Parabéns pelo texto Léo!
    Realmente são dois lados que passam por sérias dificuldades: os profissionais da saúde e os pacientes. Que não percamos a esperança por dias melhores. Forte abraço.

  3. Caro Leonardo, reflexão muitíssimo pertinente.

    De fato, vivemos um complexo dilema ético, a princípio, entre a deslumbrante incorporação de tecnologia (nem sempre efetiva ou acessível) e a dita “inflação médica” que vem achatando a remuneração profissional.

    Escondido por esse, há outro dilema eticamente, talvez, ainda mais relevante onde fica o cuidado médico diante da proletarização médica?

    Embora seja discutido desde o século XIX, a proletarização médica está cada vez mais evidente e inegável. E nós uma categoria sabidamente elitizada, viemos neste processo relegando a segundo plano o “cuidar”.

    Contexto complexo cuja solução não é nada simples e não será resolvida sob o olhar economicista da “inflação médica”. Precisamos prosseguir com esse debate.

    Parabéns!!!

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